quinta-feira, 29 de outubro de 2015

TESTAMENTO - de Ana Luísa Amaral

Vou partir de avião
E o medo das alturas misturado comigo
Faz-me tomar calmantes
E ter sonhos confusos

Se eu morrer
Quero que a minha filha não se esqueça de mim
Que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
E que lhe ofereçam fantasia
Mais que um horário certo
Ou uma cama bem feita

Dêem-lhe amor e ver
Dentro das coisas
Sonhar com sóis azuis e céus brilhantes
Em vez de lhe ensinarem contas de somar
E a descascar batatas

Preparem minha filha para a vida
Se eu morrer de avião
E ficar despegada do meu corpo
E for átomo livre lá no céu

Que se lembre de mim
A minha filha
E mais tarde que diga à sua filha
Que eu voei lá no céu
E fui contentamento deslumbrado
Ao ver na sua casa as contas de somar erradas
E as batatas no saco esquecidas
E íntegras.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

CANÇÃO - de Frank Bidart


(Tradução do inglês:  Carlos Machado)


Você sabe que é ali a toca
onde o urso por algum
tempo deixa de existir.

Entre. Afinal, você matou bastante e comeu
bastante para ficar gordo o bastante
e por algum tempo deixar de existir.

Entre. É preciso talento para viver à noite, e esconder
dos outros esse talento, mas agora você fareja
a temporada em que é preciso deixar de existir.

Entre. O que cresce dentro de você,
para o bem ou para o mal, exige que
por algum tempo você deixe de existir.

Não está chovendo lá dentro
esta noite. Você sabe que é lá. Rasteje e entre.


.


SONG

You know that it is there, lair
where the bear ceases
for a time even to exist.

Crawl in. You have at last killed
enough and eaten enough to be tat
enough to cease for a time to exist.

Crawl in. It takes talent to live at night, and scorning
others you had that talent, but now you sniff
the season when you must cease to exist.

Crawl in. Whatever for good or ill
grows within you needs
you for a time to cease to exist.

It is not raining inside
tonight. You know that it is there. Crawl in.



Fonte: http://www.algumapoesia.com.br/

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

QUARTO CINZA - de Wallace Stevens

Embora habites um quarto que é cinza,
Exceto pela prata
Do papel de seda,
E roces
O teu pálido vestido branco;
Ou levantes uma das verdes contas
Do teu colar,
Para deixá-la cair em seguida;
Ou contemples o teu leque verde
Estampado com os rubros galhos de um salgueiro rubro;
Ou, com um dedo,
Movas a folha no vaso –
A folha que caiu dos galhos da forsítia
Ao teu lado...
O que é tudo isso?
Eu sei com que fúria bate o teu coração.

Tradução: Sueli Cavendish
Fonte: http://www.suplementopernambuco.com.br/index.php/ficcionais/295-um-moderno-revelado.html

segunda-feira, 13 de maio de 2013

POEMA DO MAIS TRISTE MAIO - de Manuel Bandeira

Meus amigos, meus inimigos
Saibam todos que o velho bardo
Está agora, entre mil perigos,
Comendo em vez de rosas, cardo.

Acabou-se a idade das rosas!
Das rosas, dos lírios, dos nardos
E outras especies olorosas:
É chegado o tempo dos cardos.

E passada a sazão das rosas,
Tudo é vil, tudo é sáfio, árduo.
Nas longas horas dolorosas
Pungem fundo as puas do cardo.

As saudades não me consolam.
Antes ferem-me como dardos.
As companhias me desolam
E os versos que me vêm, vem tardos.

Meus amigos, meus inimigos,
saibam todos que o velho bardo
Está agora, entre mil perigos,
Comendo em vez de rosas, cardo.


Livro: Bandeira de Bolso, editora L&PM, 2010

segunda-feira, 29 de abril de 2013

SONETO - de Gregório de Matos



Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,
Da vossa alta clemência me despido,
Porque quanto mais tenho delinquido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto um pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido,
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha, e já cobrada
Glória tal, e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na Sacra História:

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,
Cobrai-a, e não queiras, Pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.

Gregório de Matos, no livro Poemas Satíricos, Martin Claret, 2012

terça-feira, 16 de abril de 2013

EU (SAGITÁRIO) - de Alonso Rocha




Tem a crina de lua esse cavalo,
dorso de girassol, patas de vento,
e como vive além do pensamento
o poeta não consegue mais domá-lo.

O seu olhar é de corça, o pêlo ralo,
mas galopa entre chamas. Cata-vento
ele mói as palavras-alimento,
rumina sonhos seu maior regalo.

Num tempo sem futuro nem passado
busca Jerusalém, fértil de medos
e, aos coices, quebra o mármore sagrado.

Sabe através da chuva a sua idade
e em folhas de papel guarda segredos
- uma parte animal, um Deus metade.


Alonso Rocha. Livro: O tempo e o canto, Unama, 2009.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

[Mal te ergas do sono profundo] de Antônio Teixeira e Castro



Mal te ergas do sono profundo
vai abrir as comportas, olha teu gado
submisso e manso
Rega teu prado e lava tua alma

Revê o tempo das veias
no seu alargamento pelo regadio
vigilante

Ao primeiro sinal de inocência
repete três vezes o nome de tua mãe

Mãe:
As árvores este ano estão negras
e os grilos não me chamam...


Autor: Antônio Teixeira e Castro
Livro: Texturas e constelações, editora Escrituras, 2005