segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

[JUNTOS] - de Age de Carvalho


JUNTOS. Todas as velas
se apagaram, aceitemos.

Confia: filho, não sei
o caminho – só tens
uma palavra, esta,
minha.

Autor: Age de Carvalho (livro Pedra-um)

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

O QUE FIZERAM DO NATAL - de Carlos Drummond de Andrade


Natal.
O sino longe toca fino,
Não tem neves, não tem gelos.
Natal.
Já nasceu o deus menino.
As beatas foram ver,
encontraram o coitadinho
( Natal)
mais o boi mais o burrinho
e lá em cima
a estrelinha alumiando.
Natal.

As beatas ajoelharam
e adoraram o deus nuzinho
mas as filhas das beatas
e os namorados das filhas,
mas as filhas das beatas
foram dançar black-bottom
nos clubes sem presépio.

Autor: Carlos Drummond de Andrade (livro Alguma poesia)

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

INTERROGAÇÃO - de Camilo Pessanha


Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,
Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo;
E apesar disso, crê! Nunca pensei num lar
Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.

Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito.
E nunca te escrevi nenhuns versos românticos.
Nem depois de acordar te procurei no leito
Como a esposa sensual do Cântico dos Cânticos.

Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo
A tua cor sadia, o teu sorrso terno...
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso
Que me penetra bem, como este sol de Inverno.

Passo contigo a tarde e sempre sem receio
Da luz crepuscular, que enerva, que provoca.
Eu não demoro o olhar na curva do teu seio
Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.

Eu não sei se é amor. Será talvez começo...
Eu não sei que mudança a minha alma pressente...
Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço,
Que adoecia talvez de te saber doente.

Autor: Camilo Pessanha (livro Clepsidra)

sábado, 17 de dezembro de 2011

MEU HUMILDE AMIGO - de Francis Jammes


Meu cão fiel, humilde amigo, sucumbiste
Sob a mesa, fugindo à morte como à vespa
Tu fugias em vida. Ali tua cabeça
Voltaste para mim no passo breve e triste.

Companheiro banal do homem, tu que em teus dias
No que falta ao teu dono achas o que te baste,
Ó ser bendito que a jornada acompanhaste
Do arcanjo Rafael e do jovem Tobias...

Tal como um santo ama ao seu Deus, num grande exemplo
Amaste-me também, ó servo verdadeiro!
O mistério de tua obscura inteligência
Vive num paraíso inocente e fagueiro.

Ah se de vós, meu Deus, a graça eu alcançasse
De face a face vos olhar na eternidade,
Fazei que um pobre cão contemple face a face
Quem para ele foi um deus na humanidade.

Autor: Francis Jammes (tradução de Manuel Bandeira, no livro Estrela da Vida Inteira)

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

TECENDO A MANHÃ - de João Cabral de Melo Neto

1

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

Autor: João Cabral de Melo Neto (livro A educação pela pedra)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

VERSOS DE NATAL - de Manuel Bandeira

Espelho, amigo verdadeiro,
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!

Mas se fosses mágico,
Penetrarias até ao fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.


Autor: Manuel Bandeira (livro Estrela da vida inteira)

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

ORFANDADE - de Adélia Prado


Meu Deus,
me dá cinco anos.
Me dá um pé de fedegoso com formiga preta,
me dá um Natal e sua véspera,
o ressonar das pessoas no quartinho.
Me dá a negrinha Fia pra eu brincar,
me dá uma noite pra eu dormir com minha mãe.
Me dá minha mãe, alegria sã e medo remediável,
me dá a mão, me cura de ser grande,
ó meu Deus, meu pai,
meu pai. 

Autora: Adélia Prado (livro  Bagagem)

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Salmos, 137


Às margens dos rios da Babilônia,
nós nos assentávamos e chorávamos,
lembrando-nos de Sião.
Nos salgueiros que lá havia,
pendurávamos as nossas harpas,
pois aqueles que nos levaram cativos nos pediam canções,
e os nossos opressores, que fôssemos alegres, dizendo:
Entoai-nos algum dos cânticos de Sião.

Como, porém, haveríamos de entoar o canto do Senhor
em terra estranha?
Se eu de ti me esquecer, ó Jerusalém,
que se resseque a minha mão direita.
Apegue-se-me a língua ao paladar,
se me não lembrar de ti,
se não preferir eu Jerusalém
à minha maior alegria.

Contra os filhos de Edom, lembra-te, Senhor,
do dia de Jerusalém,
pois diziam: Arrasai-a, arrasai-a,
até aos fundamentos.
Filha da Babilônia, que hás de ser destruída,
feliz aquele que te der o pago
do mal que nos fizeste.
Feliz aquele que pegar teus filhos
e esmagá-los contra a pedra.

[tradução de João Ferreira de Almeida, versão Revista e atualizada, SBB]

terça-feira, 29 de novembro de 2011

MAR PORTUGUEZ - de Fernando Pessoa


Ó mar salgado, quanto do teu sal 
São lágrimas de Portugal! 
Por te cruzarmos, quantas mães choraram, 
Quantos filhos em vão rezaram! 
Quantas noivas ficaram por casar 
Para que fosses nosso, ó mar! 

Valeu a pena? Tudo vale a pena  

se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador 
Tem que passar além da dor. 
Deus ao mar o perigo e o abismo deu, 
Mas nele é que espelhou o céu. 

Autor: Fernando Pessoa (livro Mensagem)

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

DE VULGARI ELOQUENTIA - de Paulo Henriques Britto


A realidade é coisa delicada,
de se pegar com as pontas dos dedos.

Um gesto mais brutal, e pronto: o nada.
A qualquer hora pode advir o fim.
O mais terrível de todos os medos.

Mas, felizmente, não é bem assim.
Há uma saída - falar, falar muito.
São as palavras que suportam o mundo,
não os ombros. Sem o "porque", o "sim",

todos os ombros afundam juntos.
Basta uma boca aberta (ou um rabisco
num papel) para salvar o universo.
Portanto, meus amigos, eu insisto:
falem sem parar. Mesmo sem assunto.

Autor: Paulo Henriques Britto (livro Macau)